terça-feira, 22 de novembro de 2016

Capítulo 17
ME SENTEI AO PÉ DA ÁRVORE. As pernas dobradas contra o peito. Esperava. Minha mãe sempre dizia que era isso o que devíamos fazer quando nos perdêssemos. Isso me deu tempo para pensar no que acabara de acontecer.
Como foi possível os rebeldes entrarem no palácio dois dias seguidos? Dois dias seguidos! Será que as coisas tinham piorado tanto lá fora desde o começo da Seleção? Pelo que via quando ainda estava na Carolina e pelo que vivi no palácio, era um fato inédito.
Minhas pernas estavam arranhadas, e, agora que eu não estava escondida, sentia as picadas. Também havia uma feridinha no meio da minha coxa que eu não sabia ao certo como aparecera. Estava com sede, e assim, quieta, comecei a sentir o desgaste emocional, mental e físico daquele dia. Descansei a cabeça na árvore e fechei os olhos. Não queria dormir. Mas aconteceu.
Algum tempo depois, ouvi um som de passos. Escancarei os olhos. A floresta estava mais escura do que me lembrava. Por quanto tempo tinha dormido?
Meu primeiro impulso foi subir novamente na árvore. Cheguei mesmo a correr para trás do tronco, pisando por cima dos retalhos da bolsa da rebelde. Mas então ouvi alguém chamar meu nome.
— Senhorita America! — alguém disse. — Onde você está?
— Senhorita America? — chamou outra voz.
Em seguida, em voz alta, ouvi alguém ordenar.
— Certifiquem-se de ter vasculhado todos os lugares. Se a mataram, podem tê-la pendurado ou tentado enterrá-la. Atenção.
— Sim, senhor — os homens responderam em coro.
Espiei por trás da árvore, concentrando-me nos sons. Apertei os olhos na tentativa de distinguir as silhuetas que se moviam em meio às sombras; não tinha muita certeza de que tinham vindo me salvar. Mas um dos guardas, que apesar de puxar um pouco a perna não ficava para trás de forma alguma, me deu a certeza de estar salva.
Um pequeno e fraco raio de sol iluminou o rosto de Aspen e eu corri.
— Estou aqui! — gritei. — Estou aqui!
Corri direto para os braços de Aspen, pela primeira vez sem me importar com quem nos veria.
— Graças aos céus — ele disse, esbaforido.
Depois, voltando-se para os outros, gritou:
— Estou com ela! Está viva!
Aspen inclinou-se e me pegou no colo, como se eu fosse um bebê.
— Estava com muito medo de encontrar seu corpo por aí. Você está ferida?
— Um pouco, nas pernas.
Um segundo depois, estávamos rodeados por vários guardas, que parabenizavam Aspen pelo trabalho bem-feito.
— Senhorita America — o comandante falou — você tem algum ferimento?
— Apenas uns arranhões na perna — respondi, balançando a cabeça.
— Eles tentaram machucá-la?
— Não. Eles não me pegaram.
Ele pareceu um pouco surpreso.
— Penso que nenhuma das outras garotas correria mais rápido do que eles.
Sorri, finalmente tranquila.
— Nenhuma das outras é uma Cinco.
Vários guardas riram, inclusive Aspen.
— Bom argumento. Vamos levá-la de volta.
Ele se pôs à nossa frente e ordenou aos outros soldados:
— Estejam atentos. Eles ainda podem estar nas imediações.
Durante o caminho, Aspen falou-me em voz baixa:
— Sei que você é rápida e esperta, mas fiquei apavorado.
— Menti para o oficial — sussurrei.
— O que você quer dizer?
— Eles chegaram a me alcançar.
Aspen me encarou horrorizado.
— Não fizeram nada, mas uma menina me viu. Ela fez uma reverência e foi embora.
— Reverência?
— Também fiquei surpresa. Ela não parecia brava ou ameaçadora. Na verdade, parecia uma garota normal.
Pensei na comparação de Maxon entre os dois grupos rebeldes e tive certeza de que aquela garota era nortista. Não havia qualquer agressividade nela; apenas a vontade de cumprir seu dever. E não havia dúvidas de que o ataque da noite anterior tinha sido sulista. Será que isso significava que os ataques não foram apenas seguidos, mas executados por grupos diferentes? Será que os nortistas nos espreitavam e esperavam para nos pegar exaustos? Imaginá-los espionando o palácio o tempo todo era um pouco assustador.
Ao mesmo tempo, o ataque foi quase engraçado. Teriam simplesmente entrado pela porta da frente? Por quantas horas permaneceram no palácio para coletar seus tesouros? Isso me lembrou de algo.
— Ela estava com livros, um monte de livros — afirmei.
Aspen concordou com a cabeça.
— Parece que isso acontece bastante. Ninguém faz ideia do que fazem com eles. Meu palpite é que usam para fazer fogueiras. Acho que é frio onde eles vivem.
— Humm — respondi, sem responder.
Se eu precisasse de combustível, pensaria em lugares muito mais fáceis de conseguir do que no palácio. E a garota estava tão desesperada para juntá-los que eu tinha certeza de que era mais que isso.
Foi preciso uma hora de caminhada lenta e constante para voltarmos ao palácio. Mesmo machucado, Aspen não me deixou escorregar de seus braços em momento algum. De fato, parecia gostar do trajeto apesar do trabalho extra. Eu também gostei.
— Os próximos dias talvez sejam cheios para mim, mas tentarei vê-la em breve — Aspen falou ao meu ouvido enquanto cruzávamos o gramado amplo e fofo que dava para o palácio.
— Tudo bem — respondi baixo.
Ele abriu um pequeno sorriso, e eu o imitei, contemplando a vista diante de nossos olhos. O palácio brilhava ao sol do fim da tarde; em cada um dos andares, havia janelas com luzes acesas. Nunca havia visto o palácio assim. Lindo.
Por algum motivo, pensei que Maxon estaria lá, à minha espera na porta dos fundos. Não estava. Ninguém estava. Aspen recebeu ordens de levar-me até a ala hospitalar para que o doutor Ashlar pudesse cuidar das minhas pernas; outro guarda foi enviado para contar à família real que eu fora encontrada viva.
Minha volta passou em branco: fiquei sozinha em meu leito com as pernas enfaixadas até cair no sono.
Escutei um espirro.
Abri os olhos um pouco confusa até lembrar onde estava. Pisquei os olhos e inspecionei o quarto.
— Não queria acordar você — disse Maxon, bem baixinho. — Você tem que voltar a dormir.
Ele estava sentado em uma cadeira ao lado do meu leito, tão próximo que poderia encostar a cabeça em meu cotovelo se quisesse.
— Que horas são? — perguntei, esfregando os olhos.
— Quase duas.
— Da manhã?
Maxon confirmou. Ele me olhava atentamente, e logo fiquei muito preocupada com minha aparência. Eu tinha lavado o rosto e prendido os cabelos quando cheguei, mas era certo que minha bochecha estava cheia de marcas de travesseiro.
— Você nunca dorme? — perguntei.
— Durmo. Só estou tenso.
— Risco laboral? — ironizei, sentando-me na cama.
Ele abriu um sorriso.
— Algo do tipo.
Fez-se um silêncio longo. Nenhum de nós sabia o que dizer.
— Pensei uma coisa hoje na floresta — falei, do nada.
O sorriso dele aumentou diante da minha facilidade em pôr o incidente de lado.
— É mesmo?
— Sobre você.
Ele chegou um pouco mais perto, seus olhos castanhos cravados nos meus.
— Me conte.
— Bem — comecei — estava pensando sobre o seu comportamento ontem, quando Kriss e Elise ainda não tinham chegado ao abrigo. Você ficou tão preocupado. E hoje, quando os rebeldes apareceram, vi você tentar correr atrás de mim.
— Tentei. Sinto muito — ele balançou a cabeça, envergonhado por não ter feito mais.
— Não estou chateada — expliquei. — Quando eu estava perdida, pensei na sua preocupação comigo, na sua preocupação com as outras. Não tenho a pretensão de adivinhar seus sentimentos em relação a cada uma de nós, mas sei que você e eu não estamos entre os destaques da programação atualmente.
— Já tivemos dias melhores — ele comentou, com um sorriso nos lábios.
— Mas mesmo assim você correu atrás de mim. Você confiou Kriss a um guarda porque ela não podia correr. Você tenta nos manter seguras. Todas. Então, por que machucaria uma de nós?
Ele permaneceu calado, sem saber ao certo aonde eu queria chegar.
— Agora compreendo. Se você está preocupado com a nossa segurança, jamais faria aquilo com Marlee. Tenho certeza de que teria impedido o castigo se pudesse.
Ele soltou um suspiro e disse:
— Em um piscar de olhos.
— Eu sei.
Um pouco hesitante, Maxon estendeu o braço por cima da cama para segurar minha mão. Deixei.
— Lembra-se do que lhe disse outro dia, que tinha algo que queria mostrar a você?
— Sim.
— Não se esqueça disso, certo? O dia está próximo. O cargo tem muitas exigências, nem sempre agradáveis. Mas, às vezes... às vezes você pode fazer coisas boas.
Não entendi o que ele quis dizer, mas fiz que sim com a cabeça.
— Imagino que terei de esperar até vocês terminarem a tarefa. Vocês estão um pouco atrasadas.
— Argh! — soltei a mão de Maxon e tapei os olhos. Tinha me esquecido completamente da recepção. Olhei-o novamente. — Ainda vão querer que a gente faça isso? Tivemos dois ataques de rebeldes, e passei a maior parte do dia perdida na floresta. Estragaremos tudo.
— Vocês terão que se superar — disse ele, com uma expressão simpática no rosto.
Deixei minha cabeça cair sobre o travesseiro.
— Vai ser um desastre.
Ele riu.
— Não se preocupe. Mesmo se você não for bem como as outras, não é do meu feitio enxotá-la daqui.
Algo naquela frase soou estranho. Me sentei de novo.
— Você quer dizer que se as outras forem piores que eu, uma delas pode ser enxotada?
Maxon hesitou por um instante, evidentemente sem saber ao certo o que responder.
— Maxon?
Ele suspirou.
— Tenho duas semanas antes do próximo corte. E a tarefa terá um peso grande. Você e Kriss estão na situação mais difícil. Uma nova relação, menos gente para trabalhar; e apesar de terem uma cultura alegre, os italianos ofendem-se com facilidade. E além disso, vocês quase não tiveram tempo para trabalhar...
Imaginei se dava para notar o sangue subindo pelo meu rosto.
— Não deveria ajudar, mas se precisarem de algo, por favor digam. Sou incapaz de mandar uma de vocês duas para casa.
Quando tivemos nossa primeira briga, por causa de Celeste, pensei que um pedaço de mim tinha morrido. E depois, quando Marlee se foi tão de repente, pensei a mesma coisa. Tinha certeza de que sempre que algo bloqueava o meu caminho, pedaços do meu coração se desintegravam. Mas eu estava errada. Lá, deitada no leito do hospital, meu coração se despedaçou pela primeira vez de verdade. E a dor era indescritível. Até aquele momento, eu tentava me convencer de que tudo que tinha visto entre Maxon e Kriss era minha imaginação, mas agora eu tinha certeza.
Ele gostava dela. Talvez tanto quanto gostava de mim.
Concordei com a cabeça diante da oferta, incapaz de dizer qualquer outra coisa.
Falei a mim mesma para pegar meu coração de volta, ele não podia ser de Maxon. Tínhamos começado essa história como amigos. Talvez fosse esse o nosso destino: bons amigos. Mas eu estava arrasada.
— Preciso ir — disse ele. — E você precisa dormir. Seu dia foi muito longo.
Fiz uma cara de tédio. O ataque e a floresta não tinham sido nem a metade dos meus problemas.
Maxon se levantou e ajeitou o terno.
— Queria dizer muito mais a você. Realmente pensei que a tinha perdido.
— Eu estou bem. De verdade — assegurei, dando de ombros.
— Sei disso agora. Mas em vários momentos do dia fui obrigado a me preparar para o pior.
Ele fez uma pausa para ponderar suas palavras.
— Geralmente — continuou — entre todas as garotas, é mais fácil falar com você sobre a nossa relação. Mas sinto que não é a coisa mais sábia a fazer agora.
Encolhi a cabeça. Era impossível tentar falar de sentimentos com alguém que obviamente tinha uma queda por outra garota.
— Olhe para mim, America — ele pediu, com a voz suave.
Olhei.
— Não tem problema. Posso esperar. Só quero que saiba... Não sou capaz de encontrar palavras para expressar o tamanho do meu alívio ao ver você aqui, inteira. Nunca fui tão grato por nada.
Um silêncio maravilhado tomou conta de mim, como sempre acontece quando ele toca em certos pontos do meu coração. Um pedaço de mim, no entanto, preocupava-se com minha facilidade para acreditar em suas palavras.

— Boa noite, America.
Capítulo 16
AO EMERGIR DA ESCADARIA que me levou à segurança na noite anterior, ficou claríssimo que os sulistas haviam estado ali. Mesmo no corredor curto que dava para meu quarto, havia uma pilha imensa de destroços que tive de escalar para chegar à porta.
Geralmente, a pior parte da destruição já tinha sumido quando nos liberavam. Dessa vez, porém, parecia haver trabalho demais para os funcionários, e se fôssemos esperar, passaríamos o dia no pavimento subterrâneo. Ainda assim, queria que eles se esforçassem mais. Observei um grupo de criadas tentando apagar com esfregões uma pichação gigante em uma parede: ESTAMOS CHEGANDO.
A frase repetia-se por todo o corredor; às vezes escrita com lama, outras vezes com tinta; uma parecia escrita com sangue. Senti calafrios, e me perguntei o que ela significaria.
Enquanto observava, minhas criadas correram até mim.
— A senhorita está bem? — perguntou Anne.
Levei um susto com aquela aparição repentina.
— Hmm, sim. Bem — e tornei a olhar para as palavras na parede.
— Venha, senhorita, vamos arrumá-la — insistiu Mary.
As segui obedientemente, ainda meio impressionada com tudo o que vira e confusa demais para fazer qualquer outra coisa. As três trabalharam com dedicação, como quando queriam me acalmar por meio da rotina matinal. Algo em suas mãos firmes – mesmo nas de Lucy – era reconfortante.
Quando terminaram de me arrumar, uma criada me acompanhou até a parte externa do palácio; aparentemente, era lá que trabalharíamos naquela manhã. Era tão fácil esquecer o vidro quebrado e a pichação assustadora sob o sol de Angeles. Mesmo Maxon e o rei se sentaram em uma mesa ao sol com seus conselheiros para analisar montes de documentos e tomar decisões.
Em uma tenda, a rainha lia alguns papéis e chamava a atenção de uma criada para os detalhes. Em uma mesa perto da rainha, Elise, Celeste e Natalie planejavam sua recepção. Estavam tão envolvidas que pareciam ter se esquecido completamente da noite difícil que tivéramos.
Kriss e eu estávamos do outro lado do quintal, sob uma tenda similar, mas nosso trabalho avançava devagar. Era difícil para mim conversar com ela e ao mesmo tempo lutar para arrancar da cabeça a cena de Maxon e ela em seu momento a sós. Apenas a assistia sublinhando trechos dos documentos dados por Silvia e rascunhando umas frases nas margens do papel.
— Acho que descobri como fazer com as flores — comentou ela, sem tirar os olhos do papel.
— Ah. Que bom.
Deixei meus olhos chegarem a Maxon. Ele tentava parecer mais ocupado do que realmente estava. Qualquer pessoa atenta perceberia que o rei fingia não ouvir seus comentários. Não entendi aquilo. Se o rei preocupava-se com a questão de seu filho tornar-se um bom líder, o que tinha que fazer era ensiná-lo de verdade, e não impedi-lo de fazer qualquer coisa por medo de eventuais erros.
Maxon repassou alguns documentos e levantou os olhos. Nossos olhares se cruzaram e ele acenou. Quando fui erguer a mão, vi pelo canto do olho que Kriss respondia ao aceno cheia de entusiasmo. Voltei a concentrar-me nos papéis, tentando esconder minhas bochechas coradas.
— Ele não é bonito?
— Claro.
— Fico imaginando como serão nossos filhos com os cabelos dele e os meus olhos.
— Como vai o tornozelo?
— Ah — disse ela. — Dói um pouco, mas o doutor Ashlar disse que ficarei boa até a recepção.
— Que bom — falei, finalmente olhando em seus olhos. — Ninguém gostaria de vê-la mancando por aí quando os italianos chegarem.
Eu tentei soar amistosa, mas notei que Kriss duvidava de meu tom de voz. Ela abriu a boca para falar algo, mas logo desviou o olhar. Olhei para onde ela olhava e vi Maxon aproximar-se da mesa com um lanche que os mordomos haviam preparado para nós.
— Já volto — Kriss disse com rapidez, antes de mancar até Maxon com uma velocidade acima da que eu considerava possível.
Não consegui tirar os olhos. Celeste se aproximou também, e os três conversavam calmamente enquanto se serviam de água e fatias de sanduíche. Celeste disse algo que fez Maxon rir. Kriss parecia sorrir, mas claramente estava aborrecida por Celeste interromper seu divertimento.
Eu quase agradeci Celeste naquela hora. Ela podia ser mil coisas que eu odiava, mas em compensação nunca se intimidava. Bem que eu precisava ser um pouco assim.
O rei berrou algo para um de seus conselheiros, e minha cabeça voltou-se imediatamente para ele. Não captei exatamente as palavras, mas ele parecia nervoso. Por trás dele, pude avistar Aspen, que fazia a ronda.
Ele me olhou rapidamente e arriscou uma piscada rápida. Sabia que sua ideia era diminuir minha preocupação, e até que funcionou um pouco. No entanto, não pude deixar de pensar sobre o que teria acontecido na noite passada para deixá-lo mancando um pouco e com um esparadrapo próximo ao olho.
Enquanto eu tentava descobrir um meio imperceptível de chamá-lo para o meu quarto esta noite, o telefone tocou dentro do palácio.
— Rebeldes! — gritou um guarda. — Corram!
— O quê? — gritou outro guarda, confuso.
— Rebeldes! Dentro do palácio! Estão chegando!
As palavras do guarda fizeram a ameaça na parede surgir na minha mente: ESTAMOS CHEGANDO.
As coisas aconteceram muito rápido. As criadas escoltaram a rainha para o lado mais distante do palácio. Algumas puxavam-na pelas mãos para que se movesse mais depressa, ao passo que outras correram atrás dela, como era seu dever, para evitar que fosse atacada.
O vestido vermelho de Celeste faiscou atrás da rainha, pois provavelmente aquela seria a rota para o lugar mais seguro. Maxon levantou Kriss e a botou no colo do guarda mais próximo, que por acaso era Aspen.
— Corra! — ele gritou para Aspen. — Corra!
Aspen, leal ao extremo, correu carregando Kriss como se ela não pesasse nada.
— Maxon, não! — gritou ela por cima dos ombros de Aspen.
Ouvi um estouro alto vindo das portas abertas do palácio e gritei. Entendi o que era aquele som ao ver chegarem vários guardas em uniformes escuros com armas nas mãos. Mais dois estouros e congelei de pavor, capaz apenas de observar o fluxo de pessoas movendo-se ao meu redor. Os guardas empurravam as pessoas para os lados, pedindo-lhes que abrissem caminho enquanto um enxame de pessoas vestindo calças reforçadas e casacos grossos corriam do lado de fora com mochilas e sacolas lotadas. Outro tiro.
Por fim, tomei consciência de que precisava me mexer. Dei meia-volta e corri sem pensar.
Com aqueles rebeldes inundando o palácio, o mais lógico pareceu-me correr deles. Mas isso implicava partir em direção à grande floresta com um bando de malvados atrás de mim. Levei alguns tombos por causa das sapatilhas, e cheguei a pensar em arrancá-las. No fim das contas, decidi que sapatilhas escorregadias eram melhor que andar descalça.
— America — chamou Maxon — não! Volte!
Arrisquei olhar para trás e vi o rei agarrar Maxon pelo colarinho do paletó, arrastando-o para outro lugar. Percebi o terror nos olhos de Maxon, que continuavam fixos em mim. Outro disparo.
— Abaixe-se! — Maxon gritou. — Vocês vão acertá-la! Cessar fogo!
Houve mais disparos, e Maxon continuou a gritar suas ordens até eu estar muito longe para entendê-las. Corri pelo campo aberto e percebi que estava só. Maxon fora contido pelo rei, e Aspen desempenhava seu papel de soldado. Qualquer guarda que desse comigo estaria à caça de rebeldes. Tudo o que eu podia fazer era correr para me salvar.
O medo me fez ser rápida, e me surpreendi com a destreza dos meus movimentos assim que entrei na floresta. O solo estava seco e firme, rachado por causa dos meses de estiagem. Sentia de leve os arranhões em minhas pernas, mas não quis diminuir o ritmo para checar se estavam muito feios.
Suava tanto que o vestido colava no meu peito. O bosque era mais frio e, a cada passo meu, ficava mais escuro; mas eu estava quente. Em casa, às vezes eu corria por diversão, para brincar com Gerad ou apenas para sentir as dores do esforço. Só que eu já estava há meses acomodada no palácio, comendo comida de verdade pela primeira vez, e pude sentir as consequências: meus pulmões queimavam e minhas pernas latejavam. Ainda assim, eu corria.
Após me embrenhar pela floresta, olhei para trás para conferir quão longe estariam os rebeldes. Não conseguia ouvi-los por causa do sangue que pulsava em minhas orelhas; tampouco pude vê-los. Decidi que aquela era a melhor oportunidade de esconder-me antes de eles notarem um vestido brilhante no meio do bosque sombrio.
Não parei até encontrar uma árvore grande o suficiente para me esconder. Fui para trás dela e logo notei um galho baixo em que podia subir. Arranquei os sapatos e os atirei para longe, torcendo para que não conduzissem os rebeldes até mim. Subi, embora não muito alto, e apoiei as costas na árvore, encolhida o máximo que podia.
Me esforcei para diminuir o ritmo da respiração com medo de que o som entregasse minha localização. Mas mesmo depois disso, houve silêncio por uns instantes. Imaginei tê-los deixado para trás. Não me mexi, à espera de uma confirmação. Segundos mais tarde, escutei as folhas farfalharem loucamente.
— Devíamos ter vindo à noite — alguém, uma voz de menina, bufou.
Espremi meu corpo contra a árvore, rezando para que nenhum galho estalasse.
— Eles não estariam do lado de fora à noite — replicou um homem.
Eles ainda corriam, ou pelo menos tentavam correr. Suas vozes davam a impressão de que aquilo lhes custava muito.
— Deixe-me carregar alguns — ele se ofereceu.
Pareciam estar muito próximos.
— Eu consigo.
Prendi a respiração e observei-os passarem bem debaixo da minha árvore. Logo quando pensava estar a salvo, a sacola da garota rasgou e uma pilha de livros caiu no chão da floresta. O que ela fazia com tantos livros?
— Droga — xingou e pôs-se de joelhos.
Ela usava uma jaqueta jeans com uma espécie de flor bordada.
— Eu disse para você me deixar ajudar.
— Fica quieto!
A garota empurrou as pernas do rapaz, e por esse gesto brincalhão pude notar quanto amor havia entre os dois.
Ao longe, alguém assoviou.
— Será Jeremy? — ela perguntou.
— Parece — respondeu ele, abaixado para recolher os livros.
— Vá buscá-lo. Estou logo atrás de você.
Ele hesitou por um momento, mas concordou; beijou a testa da moça e correu em direção ao assovio.
A garota juntou o resto dos livros. Com uma faca, cortou a alça da bolsa e usou-a para amarrá-los.
Tive uma sensação de alívio quando ela se levantou; esperava que ela se pusesse a caminho. Mas ela jogou o cabelo para trás e olhou para o alto.
E me viu.
Nenhum silêncio ou imobilidade adiantariam. Se eu gritasse, será que os guardas viriam? Ou será que o resto dos rebeldes estaria perto demais?
Nos encaramos. Esperei que chamasse os outros, torcendo para que seu plano, fosse qual fosse, não doesse muito.
Mas ela não fez um som. Apenas riu baixo, por causa da situação curiosa em que nos encontrávamos.
Ouviu-se outro assovio, um pouco diferente do último, e ambas olhamos na direção do som antes de nos encararmos mais uma vez.
E então, na mais inesperada das atitudes, ela jogou uma perna para trás da outra e abaixou-se graciosamente para me fazer uma reverência. Arregalei os olhos, completamente impressionada. Ela se ergueu, sorrindo, e correu rumo ao assovio. Observei-a até que as centenas de flores bordadas desapareceram por entre os arbustos.
Quando supus que mais de uma hora havia se passado, decidi descer. Fiquei parada ao pé da árvore e me dei conta de que não sabia onde estavam meus sapatos. Contornei a raiz da árvore a fim de localizar as pequenas sapatilhas brancas, mas foi em vão. Desisti e decidi tomar o caminho para o palácio.

Olhei à minha volta. Era evidente que isso não ia acontecer. Eu estava perdida.