Capítulo 10
XINGUEI E GRITEI DURANTE TODO O CAMINHO DE VOLTA. Os guardas
tiveram de me segurar tão forte que sabia que ficaria cheia de hematomas
depois. Não me importava. Tinha que lutar.
— Onde fica o
quarto dela? — ouvi um deles perguntar, virando o rosto para uma criada que
passava pelo corredor.
Eu não a reconheci,
mas ela com certeza sabia quem eu era. Ela acompanhou os guardas até a porta.
Escutei minhas criadas protestarem contra o modo como me tratavam.
— Acalme-se,
senhorita. Esse comportamento é inaceitável — um guarda resmungou ao me atirar
na cama.
— Saia da droga do
meu quarto! — eu berrei.
Minhas criadas,
todas com lágrimas nos olhos, se aproximaram de mim. Mary começou a limpar meu
vestido da sujeira do tombo, mas dei um tapa na mão dela. Elas sabiam. Sabiam e
não me avisaram.
— Vocês também! —
gritei com elas. — Todas fora, AGORA!
Elas se encolheram,
e os tremores no corpo frágil de Lucy quase me deixaram arrependida do que
tinha dito. Mas eu precisava ficar só.
— Sentimos muito,
senhorita — disse Anne, empurrando as outras duas para trás.
Elas sabiam como
Marlee e eu éramos próximas.
Marlee...
— Apenas saiam —
falei em voz baixa, com o rosto enterrado no travesseiro.
Assim que a porta
fechou, tirei o sapato que sobrara e me afundei ainda mais na cama para
finalmente compreender centenas de detalhes minúsculos. Então era aquele o
segredo que Marlee temia revelar. Ela não queria ficar porque não amava Maxon,
mas tampouco queria sair e separar-se de Carter.
Várias cenas
começaram a fazer sentido: o motivo de ela ficar em certos lugares e olhar para
as portas. Era Carter; ele estava lá. Quando o rei e a rainha da Noruécia
vieram ao palácio e ela não quis sair do sol... Carter. Era Marlee que ele
esperava quando nos trombamos na porta do banheiro. Sempre ele, aguardando em
silêncio, talvez roubando um beijo aqui e ali, à espera do momento em que
poderiam ficar juntos de verdade.
Como ela devia
amá-lo para ter sido tão descuidada, para arriscar-se tanto!
Como tudo isso
podia ser real? Não parecia possível. Eu sabia das punições para quem fizesse
coisas desse tipo, mas que aconteceria com Marlee, que ela estaria fora... Não
podia compreender.
Meu coração gelava.
Seria tão fácil eu estar no lugar dela. Se Aspen e eu não tivéssemos sido
cuidadosos, se alguém tivesse escutado nossa conversa na pista de dança na
noite anterior, poderíamos estar no lugar deles.
Será que eu
voltaria a ver Marlee algum dia? Para onde a enviariam? Seus pais continuariam
ligados a ela? Eu não sabia o que Carter era antes do recrutamento ter feito
dele um Dois, mas meu palpite era que ele era um Sete. Sete era ruim, mas era
muito melhor que ser um Oito.
Não podia acreditar
que ela era uma Oito. Aquilo não podia ser real.
Algum dia ela
poderia voltar a usar as mãos? Quanto tempo essas feridas levariam para sarar?
E Carter? Será que andaria depois daquilo?
Poderia ter sido
Aspen.
Poderia ter sido
eu.
Me senti tão mal. Tive
uma sensação cruel de alívio por não ser eu ali. Ao mesmo tempo, a culpa por
aquele alívio era tão pesada que mal podia respirar. Que pessoa ruim, que amiga
terrível eu era. Senti vergonha.
Não havia o que
fazer senão chorar.
Passei a manhã e a
maior parte da tarde encolhida na cama. Minhas criadas trouxeram o almoço, mas
sequer o toquei. Ainda bem que elas não insistiram em ficar e deixaram-me só na
minha tristeza.
Eu era incapaz de
me recompor. Quanto mais pensava no acontecido, pior ficava. Não conseguia
tirar o som dos gritos de Marlee da cabeça. Fiquei imaginando se algum dia os
esqueceria.
Ouvi uma batida
hesitante à minha porta. Minhas criadas não estavam para abrir, e eu não queria
me mover. Então, não abri. Depois de uma breve pausa, o visitante entrou mesmo
assim.
— America? — Maxon
chamou em voz baixa.
Não respondi.
Ele abriu a porta e
caminhou até minha cama.
— Sinto muito. Não
tive escolha.
Permaneci calada,
incapaz de falar.
— Era aquilo, ou
pena de morte. As câmeras os descobriram na noite passada e divulgaram o vídeo
sem nosso conhecimento — ele insistiu.
Ele se calou por um
tempo, talvez na esperança de que se ficasse ali tempo suficiente eu
encontraria algo para lhe dizer.
Por fim, Maxon
ajoelhou-se ao meu lado.
— America? Olhe
para mim, querida.
O jeito carinhoso
dele me deu um nó no estômago. Olhei mesmo assim.
— Eu precisei fazer
aquilo. Precisei.
— Como você pôde
ficar parado? — minha voz soava estranha. — Como você pôde não ter reação?
— Já lhe disse uma
vez que parte desse cargo é parecer calmo mesmo quando não se está. É uma coisa
que tive de aprender. Você também aprenderá.
Franzi a testa. Por
acaso ele pensava que eu ainda queria aquilo? Aparentemente, sim. Quando ele
compreendeu minha expressão, o espanto tomou conta de seu olhar.
— America, sei que
você está nervosa, mas por favor? Já disse: você é a única. Por favor, não faça
isso.
— Maxon — respondi
devagar. — Sinto muito, mas acho que não posso fazer isso. Nunca poderei me
sentar e assistir a uma pessoa sendo ferida daquela maneira por ordens minhas.
Não posso ser princesa.
O ar começou a
faltar a ele, era provavelmente a manifestação mais próxima de uma verdadeira
tristeza que eu tinha visto nele.
— America, você
coloca em jogo o resto de nossas vidas por causa de cinco minutos da vida
alheia. Coisas assim acontecem raramente. Você não teria que fazer isso.
Me sentei, na
esperança de que assim pensaria melhor.
— É que... não
consigo nem pensar agora.
— Então não pense —
ele insistiu. — Não deixe o momento levá-la a uma decisão sobre nós dois quando
você está tão nervosa.
Essas palavras me
pareceram um truque.
— Por favor — ele
sussurrou, cheio de intensidade, agarrando minhas mãos. O desespero de sua voz
me fez olhar para ele. — Você prometeu ficar comigo. Não desista, não assim.
Por favor.
Respirei fundo e
fiz que sim com a cabeça.
— Obrigado.
Foi evidente o seu
alívio.
Maxon permaneceu
ali sentado, segurando minha mão como se ela fosse seu último fio de esperança.
Não era como no dia anterior.
— Sei... — ele
começou a falar. — Sei que você não está segura quanto ao cargo. Sempre achei
que seria difícil para você aceitá-lo. E tenho certeza de que isso o torna mais
difícil. Mas... e quanto a mim? Você ainda está segura quanto a mim?
Hesitei, incerta
sobre o que dizer.
— Já falei que não
consigo pensar.
— Ah. Tudo bem — o
tom de voz deixava clara a sua tristeza. — Vou deixá-la em paz por ora. Mas
falamos logo.
Ele se inclinou
como se quisesse me beijar. Baixei os olhos, e ele limpou a garganta.
— Até mais,
America.
Então ele saiu.
E eu me senti
despedaçada de novo.
Minutos ou horas
depois, minhas criadas entraram e me encontraram em prantos. Eu rolava de um
lado para o outro na cama, e não havia como elas não verem a súplica em meus
olhos.
— Ah, senhorita! —
exclamou Mary, vindo me abraçar. — Vamos aprontá-la para dormir.
Lucy e Anne
começaram a desabotoar meu vestido, ao passo que Mary limpava meu rosto e
desembaraçava meu cabelo.
As criadas
sentaram-se ao meu redor e me reconfortavam enquanto eu apenas chorava. Queria
explicar que era mais que Marlee; que havia também a mágoa em relação a Maxon.
Só que seria tão vergonhoso reconhecer o quanto aquilo mexia comigo, e como eu
estava errada.
Minha dor dobrou
quando perguntei por meus pais e Anne contou que todas as famílias tinham sido
acompanhadas de volta para casa rapidamente. Não pude sequer dizer adeus.
Anne acariciava
meus cabelos, acalmando-me aos poucos. Mary estava aos meus pés e esfregava
minhas pernas para que eu relaxasse. Lucy apenas mantinha as mãos sobre seu
peito, como se sentisse tudo aquilo comigo.
— Obrigada —
balbuciei entre fungadas. — Me desculpem pelo que fiz.
Elas trocaram
olhares.
— Não há o que
desculpar, senhorita — insistiu Anne.
Quis corrigi-la –
com certeza, tinha ido longe demais no jeito como as tratara pela manhã – mas
logo veio outra batida à porta. Pensei em como dizer educadamente que não
queria ver Maxon naquele momento, mas quando Lucy se apressou em atender, vi o
rosto de Aspen do lado de fora.
— Perdão pelo
incômodo, senhoritas, mas ouvi o choro do lado de fora e quis checar se estava
tudo bem — disse ele.
Ele caminhou até
minha cama. Ação ousada depois do dia que todos tivemos.
— Senhorita
America, sinto muito por sua amiga. Ouvi dizer que ela era especial. Se
precisar de qualquer coisa, estou aqui.
Seu olhar
transmitia tantas coisas. Estava disposto a sacrificar uma imensidade de coisas
para que eu me sentisse melhor, se possível. Estava disposto a tirar tudo
aquilo de mim apenas para o meu bem.
Que idiota eu tinha
sido. Quase abri mão da única pessoa no mundo que realmente me entendia, que
realmente me amava. Aspen e eu tínhamos construído uma história juntos, e a
Seleção quase a destruiu.
Aspen era minha
casa. Aspen era minha segurança.
— Obrigada —
respondi baixo. — Sua gentileza significa muito para mim.
Aspen abriu um
sorriso quase imperceptível. Pude ver que ele queria ficar. Era o que eu queria
também, mas não ia acontecer com minhas criadas circulando por ali. Me lembrei
de quando pensei que sempre teria Aspen. Fiquei feliz de descobrir que era a
mais pura verdade.
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